15 49.0138 8.38624 1 0 4000 1 https://umasulamericana.com 300 1
theme-sticky-logo-alt
theme-logo-alt
Desvendando raízes espirituais na América Latina: um olhar decolonial sobre Deus

Desvendando raízes espirituais na América Latina: um olhar decolonial sobre Deus

Conta Global Nomad - USD 20 cashback código promocional Nomad UMASULAMERICANA20

Dediquei os últimos 9 anos a viajar de forma imersiva pela América Latina. Essa jornada me levou a refletir o quanto somos terra fértil pra tantas raízes espirituais. Desde os tempos ancestrais dos povos nativos até a chegada dos colonizadores europeus com humanos traficados da África, o tecido espiritual dessa região foi entrelaçado com raízes complexas de colonização, conversão e resistência.

Os efeitos desse encontro de crenças se enraizaram profundo na nossa cultura. Entender essas camadas profundas da espiritualidade na América Latina tem sido um processo libertador. Tem sido uma desconstrução de paradigmas e reconstrução de conexões com raízes ancestrais que influenciaram minha construção de espiritualidade como mulher brasileira.

Neste artigo do UMASULAMERCANA, te convido a adentrar essa terra comigo, reconhecendo assim tais raízes espirituais, colonialidades e as espiritualidades que moldaram a alma da América Latina. Proponho uma reflexão sobre nossas crenças e um novo olhar sobre o conceito de Deus.

O que são raízes culturais

Antes de mais nada, quero explicar o uso do termo raízes espirituais neste artigo.

Raíz cultural” é um termo metafórico pra ilustrar a complexa rede formada por elementos fundamentais, valores, tradições, práticas e crenças que constituem a base de uma determinada cultura ou sociedade.

Essas raízes culturais são o alicerce sobre o qual uma cultura se desenvolve, tal como uma árvore, e é transmitida de geração em geração. Elas desempenham então um papel fundamental na formação da identidade cultural de um grupo de pessoas. E, assim, na construção da nossa identidade enquanto individuos.

Essas raízes podem estar, por exemplo, associadas a nossa língua, expressões artísticas, na música, na gastronomia e, inclusive, na nossa crença espiritual.

As raízes culturais da América Latina são profundas e diversas, refletindo séculos de influências e interações culturais. A cultura da América Latina é o resultado de uma mistura complexa de elementos indígenas, europeus, africanos e, em algumas regiões, asiáticos, que moldaram nossa identidade única. Porém, algumas destas raízes estão doentes, como as raízes coloniais.

Neste artigo sobre raízes espirituais, que é o primeiro de uma série de textos sobre nossa construção social e nossas raízes culturais, quero abordar sobre a hegemonia cristã, as diversas expressões espirituais de culturas tradicionais, a busca pela espiritualidade nas diversas esferas e ciências e, finalmente, propor uma espiritualidade pluricultural.

As Raízes Espirituais do cristianismo

As reduções jesuítas foram assentamentos coloniais organizados por padres da Companhia de Jesus para doutrinar indigenas na fé cristã

As chances de você, que tá lendo este texto, ser cristã são grandes, afinal, mais de 88% das pessoas brasileiras são, segundo uma pesquisa de 2020.

O Brasil é o segundo país mais cristão do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com cerca de 185 milhões de pessoas cristianizadas. Assim se nota como a busca pela espiritualidade é importante pra o povo brasileiro. Inclusive já era de extrema importância em várias culturas nativas antes de os portugueses chegarem com o cristianismo em suas caravelas. Nossos ancestrais africanos também possuíam diversas expressões espirituais. Assim, entendemos que existem fortes e profundas raízes espirituais na nossa sociedade. Não só no Brasil, mas em toda a América Latina.

Processo de cristianização na América Latina

Orellana, Equador – Indígenas huaorani – Floresta Amazônica, Parque Nacional Yasuni National

“Nas Américas viviam entre 40 e 60 milhões de pessoas, segundo estimativas mais recentes. Elas falavam cerca de 1200 idiomas diferentes, agrupados em 120 famílias linguísticas”, disse à BBC News Brasil Charles C. Mann, autor do livro “1491 – Novas revelações das Américas antes de Colombo”. Esse livro tem um conteúdo tão libertador que não é encontrado facilmente por aí e um exemplar de colecionador pode custar mais de R$184.

Assim como a história do humano americano, que data de mais de 12 mil anos. No Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí, mais de mil sítios arqueológicos provam a presença pré-histórica de humanos. Foram encontradas ferramentas, esqueletos e pinturas rupestres na região. Ou seja, a História do Brasil não tem apenas 523 anos. Ela é mais antiga que Jesus Cristo. O cristianismo, por outro lado, é recente: tem menos de 2 mil anos.

A fé cristã surgiu perto dos anos 300 d.C e se espalhou a partir de Jerusalém por todo o Oriente Médio. Se tornou a religião oficial do Império Romano em 380. Na Idade Média ganhou toda a Europa e se expandiu pelo mundo na época das invasões, chamadas romanticamente de descobrimentos ou navegações.

Ou seja, o cristianismo passou de um conceito filosófico a uma religião e sofreu inúmeras mutações pra se encaixar na cultura local de cada lugar por onde passou ao longo de um milênio e dois séculos antes de chegar aqui em Abya Yala (América). À essa altura era mais uma ferramenta política de domínio e alienação que uma expressão espiritual.

E gostaria de deixar aqui um reforço pra reflexão de que o cristianismo chegou nas Américas, ou seja, não estava antes. Os povos nativos possuiam outros sistemas de crenças e desconheciam figuras bíblicas, como o próprio Deus ou o Diabo.

A religião foi a principal ferramenta nos processos de colonização das Américas, assim é uma das nossas raízes coloniais mais profundas. No Brasil, os primeiros Jesuitas passaram a chegar a partir de 1549 com o objetivo de cristianizar e aculturar os povos nativos do território de domínio português do que eles chamaram de Novo Mundo (esse mesmo, que tem mais de 12 mil anos de história comprovados).

A morte da alma do Brasil nativo

Durante os 49 anos anteriores os invasores escravizavam os indígenas, mas com a chegada dos jesuitas, acharam melhor escraviza-los mentalmente. A Companhia de Jesus enviou padres pra terra invadida além mar, que eles chamavam colônia. Os jesuítas se impressionaram com a propensão dos nativos em aceitar a fé cristã. Assim, passaram a proibir a escravização desses grupos étnicos a partir de 1570. Porém, os nativos aceitavam tal conversão, porque em troca tinham proteção contra os Bandeirantes, que eram caçadores de pessoas pra fins escravagistas. Bom, até eu aceitaria! E você?

Enfim, responsáveis ​​pela colonização da mente e da alma, os Jesuitas organizaram a população originária em assentamentos com um regime que combinava trabalho e religião. Ao subordinar os indígenas aos valores europeus, destruíram toda a diversidade cultural da população nativa da região. Em especial os costumes, o idioma e a espiritualidade. Esse é um dos episódios mais tristes e violentos da história da humanidade. Basicamente a igreja matou a alma daquelas pessoas.

Esse vídeo explica muito bem sobre essa alma, lindo demais – Indicação da @asaseraizes_

Ou seja, foi através da religião que muitas atrocidades foram cometidas contra os povos originários e os povos africanos, já que o tráfico negreiro teve apoio da igreja.

Os escravos da religião e o roubo da alma africana

Os padres defendiam que negros não tinham alma, mas que através do serviço ao próximo eles poderiam ser salvos por Deus. E não só defendiam a escravização de corpos africanos, como também possuiam seus próprios escravos e participavam ativamente do mercado de tráfico e exploraração de humanos africanos.

Esse foi outro episódio repugnante na história da humanidade: os quase 400 anos de escravidão de pessoas pretas nas Américas. O Brasil colonial e imperial foi então o país que mais traficou pessoas africanas e onde haviam mais pessoas escravizadas em toda a América. E foi também o último a abolir a escravidão oficialmente, apenas em 1888 – justamente 100 anos antes de eu nascer.

A própria igreja escravizava humanos em um sistema violento de supremacia branca. Edison Veiga escreveu pra a BBC News Brasil, que “Os escravizados mantidos por mosteiros e conventos também eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos.”

O historiador Vitor Hugo Monteiro Franco está desde 2014 revirando os arquivos da Ordem de São Bento estudando sobre a ligação da igreja com o processo escravagista. Ele conta a BBC News que “Uma das principais descobertas foi o próprio termo ‘escravos da religião'”.

Segundo ele, os monges conheciam sua escravaria, sabiam tudo sobre cada fase da vida de cada pessoa escravizada, ou seja, ser um ‘escravo da religião‘ significava ter sua vida controlada e explorada por uma instituição religiosa – que não é sua própria religião. Era uma escravização física, mental e, acima de tudo, espiritual. A igreja matou as raízes espirituais dessas pessoas.

Quero ressaltar uma questão linguística importante aqui. Note que não se dizia ‘escravo de Deus’ ou ‘escravo de Cristo’, mas sim ‘escravo da religião’. Ou seja, o compromisso da igreja não é e nunca foi com Deus, menos ainda com Cristo, mas sim com o cristianismo, a religião em si.

Deus não está nos templos

Jesus Cristo – Atos 17 versículo 24

Nota pessoal: fui cristianizada desde o nascimento, tendo sido batizada na igreja católica. Aos 11 anos me converti voluntariamente à prática evangélica, até os 23 anos. Rompi com a igreja depois de me tornar parte da liderança e perceber a estrutura falha da igreja e seus lideres. Até os 27 me dizia cristã não praticante e, depois que comecei a viajar, entrei em um processo incomodo, mas libertador, de descristianização.

Inconsciente coletivo e a espiritualidade

Gabriela Luisa, do Asas&Raízes, é astróloga nômade e vem buscando descolonizar o misticismo. Outro dia ela publicou em seu perfil no instagram sobre o inconsciente coletivo – termo que define o conceito criado por Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica.

Depois de ter lido Gabi, senti que o conceito de inconsciente coletivo seria importante pra descontruir algumas raízes coloniais ligadas a espiritualidade e religiosidade.

A questão é que a ciência da religião, segundo Jung, é a camada mais profunda da psique. Pra ele, a religiosidade é instintiva do ser humano. Nesse sentido, a religião não é apenas uma manifestação pessoal, mas sim uma herança ancestral, um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade.

Desse modo, se explica porque povos muito mais antigos que a ideia de Deus, Jesus e cristianismo já possuíam seus ritos e crenças. O cristianismo é apenas um jovem dogma coletivo dominante, não é o caminho único pra essa manifestação natural e intuitiva do ser humano até o divino.

Assim, entendo que a busca por respostas divinas, que atribuam um sentido espiritual a nossa existência, é de extrema importância pra o bem estar pessoal e pra plenitude existencial do indivíduo.

Porém, se existe uma herança, ou seja, uma memória genética espiritual, o ser latino não deveria se limitar, mas sim buscar suas respostas de forma livre em diversas expressões espirituais vindas de suas raízes: nativas, africanas, europeias pré-medievais e orientais. O ser latino deveria despertar esse inconsciente e, de forma lúcida, buscar o próprio caminho da espiritualidade.

O caminho da espiritualidade é mais seguro e justo se despertarmos os padrões limitantes do inconsciente coletivo. Desse modo, não há igreja ou seita que nos dará respostas prontas. Cada religião ou expressão espiritual passam a ser apenas ferramentas pra que possamos conhecer conceitos, mas sem a necessidade de rituais, doutrinas e muito menos imposições e até mesmo guerras. Não precisamos ser fiéis a esses conceitos, porque são apenas diferentes maneiras de enxergar a verdade.

E a verdade é uma só: deus é uma necessidade humana. E aqui a palavra deus não expressa uma divindade específica, senão que representa um instinto da alma, a busca pelo sentido da vida. Assim, precisamos instintivamente de deus, como precisamos de ar, de alimento, de sexo e amor. O caminho até deus é ancestral, histórico, científico, investigativo e individual. Não existe uma resposta pronta. Deus é um processo de autoconhecimento e de entendimento sobre o mundo.

Se Deus não está nos templos, onde ele estaria?

Meu objetivo é simples: É um entendimento completo do universo, por que ele é como ele é e por que ele existe afinal.

Stephen Hawking

Stephen Hawking, físico teórico, cosmólogo e autor britânico, buscou deus nas estrelas, ele explorou o céu pra entender a própria existência e a do Universo através da ciência.

Nietzsche, filósofo e crítico cultural, buscou deus na filosofia, questionando a necessidade de o ser humano terceirizar o controle sobre si mesmo.

Pra Spinoza, filósofo iluminista, deus se encontra em tudo o que existe, porque deus é a natureza enquanto necessidade e potência. Foi nesta filosofía panteísta que o cientista Albert Einstein se inspirava em sua própria crença em Deus.

Já pra o xamanismo, a espiritualidade é a conexão entre nosso interior com as forças da natureza, onde vivem diversos espíritos como os de plantas e animais.

Pra Osho, guru e líder espiritual, Deus é uma dependência da inconsciência humana e a espiritualidade verdadeira é a iluminação, o despertar, pelo qual se chega eliminando o ego, que segundo o neurologista e psiquiatra Freud, é nosso próprio sentido do EU.

Enfim, pra o Tantra, espiritualidade e sexualidade não se separam, a fim de alcançar a divina expansão da consciência.

“Eu acredito no Deus de Spinoza, que se revela na ordem harmoniosa de tudo o que existe, não em um Deus que se preocupa com o destino e as ações dos seres humanos.”

Albert Einstein

Entende como a igreja cristã oferece apenas um pequeno conceito de deus? Vale mencionar que este texto tem foco no cristianismo porque esta é uma das nossas raízes coloniais enquanto pessoas latinoamericanas, porém toda e qualquer religião ou expressão espiritual é limitada, incompleta.

Pra mim, Deus é a investigação em si e nós temos à nossa disposição toda a filosofia, ciência, religião e contra cultura, que são frutos de milênios de busca por deus.

E não há o que temer. Não há ninguém te olhando, te culpando, te julgando. Você é livre pra duvidar e pra seguir seu próprio caminho até a espiritualidade. O medo, o castigo e o pecado são conceitos cristãos, ou seja, não são verdade absoluta. E, caso a bíblia seja importante no teu processo, se lembre sempre que você tem direito ao livre arbitrio. Você é livre pra dizer sim ou não!

Inclusive, questionar Deus é a única maneira de realmente acreditar em sua existência. Quem nunca investigou e entendeu por si mesma que Deus existe não acredita de verdade, senão que reproduz crença. Isso é fé e a fé é cega, inocente. O verdadeiro encontro com o divino só se dá através da experimentação e pra isso é preciso duvidar.

Deus vive na dúvida. Duvide e ali o encontrará por seus próprios caminhos, mas se lembrando sempre de onde você veio, porque deus também mora na nas raízes espirituais, na ancestralidade e no inconsciente coletivo. No teu caminho sempre haverão heranças a serem questionadas, entendidas, descontruidas ou acolhidas.

Raízes Espirituais: ancestralidade e religiões latino-americanas

Se deus é uma necessidade e o inconsciente coletivo é uma coleção de ideias escondidas que todas as pessoas herdam de seus ancestrais e nós nascemos com inclinações pré-estabelecidas pra pensar, interpretar e agir de uma determinada maneira, deveria ser natural que, ao desencantar com o cristianismo, busquemos espiritualidade em outras expressões étnico religiosas latino-americanas, como a umbanda e o xamanismo, por exemplo.

Xamanismo, uma expressão religiosa ancestral dos povos originários da América

O xamanismo na América Latina é uma prática espiritual profundamente enraizada em tradições indígenas e culturas nativas ancestrais em diferentes regiões, como Amazônia e os Andes, por exemplo. É um meio de se conectar com espiritualidades tradicionais da nossa região, mantendo um forte vínculo com a natureza local e os antigos rituais que têm sido passados de geração em geração.

Muitas culturas indígenas na América Latina têm seus próprios sistemas de crenças, elementos divinos e xamãs que desempenham um papel central como intermediários entre o mundo espiritual e o mundo físico. Estas pessoas invocam os espíritos, os ancestros e forças naturais pra buscar um sul (direção), cura e conhecimento.

A natureza é um componente fundamental no xamanismo, assim levando a gente a uma conexão espiritual mais integral, coletiva, palpável e real. Em alguns sistemas de crenças tradicionais, se acredita que a Terra seja viva e consciente.

Xamãs e comunidades, em sua busca pelo divino, buscam equilibrar a relação entre os seres humanos e a natureza, reconhecendo a importância de respeitar e cuidar do meio ambiente.

Além disso, há cerimônias xamânicas, muitas vezes realizadas com o uso de plantas sagradas, como a ayahuasca, o cacto peiote, o cacto wachuma e rapés a base de tabaco. São um meio de alcançar estados alterados de consciência e a expansão dos pensamentos.

Os animais também têm um papel significativo no xamanismo, frequentemente sendo vistos como mensageiros e guias espirituais. Muitas tradições xamânicas na América Latina acreditam em animais totêmicos que representam qualidades e características espirituais específicas, como o jaguar, o puma ou o condor.

Em resumo, o xamanismo na América Latina é uma prática espiritual que se baseia em conexões profundas com as tradições e espiritualidades ancestrais. Envolve o respeito pela natureza, a comunicação com o mundo espiritual e rituais que visam cura, suleamento (direcionamento) e preservação das antigas tradições culturais e espirituais.

Nota pessoal: Durante essas cerimônias, experimentei visões e revelações espirituais e terrenas, inclusive foi assim que nasceram estes textos menos focados em viagem aqui no UMASULAMERICANA.

A afroespiritualidade da Umbanda e Santeria e o sincretismo religioso na era colonial

Enquanto o xamanismo é uma expressão espiritual tradicional nativa da nossa região, a Umbanda e a Santeria são resultados da mistura de vários aspectos religiosos e espirituais, como o espiritismo, candomblé Banto, tupi-guarani e cristianismo esotérico.

Umbanda

A Umbanda, religião afrobrasileira, surgiu no Rio de Janeiro no início do século 20 e também tem suas raízes profundamente conectadas às espiritualidades ancestrais. Acredita-se na cura mental, espiritual e física através da ajuda de divindades e entidades ancestrais presentes na natureza, como Iemanjá, a orixá das águas.

Na Umbanda, a crença na interação entre os seres humanos e os espíritos é central. Os espíritos desencarnados, incluindo ancestrais, entidades divinas, guias espirituais e caboclos, podem se comunicar com os vivos.

A Umbanda tem influências africanas, indígenas e europeias, refletindo os resultados biológicos e culturais da colonização no Brasil. Cada linha ou “corrente” da Umbanda é dedicada a diferentes tipos de espíritos e entidades, como os Orixás africanos, caboclos indígenas e pretos-velhos, que representam a sabedoria dos antepassados.

A natureza também desempenha um papel importante na Umbanda, com a crença na força da terra, água, fogo e ar. Frequentemente se evoca os elementos naturais durante rituais e cerimônias pra purificar e equilibrar a energia espiritual.

Assim como no xamanismo, a Umbanda tem um forte apreço pela cura espiritual e a busca por equilíbrio entre os reinos espiritual e terreno. Mas a diferença é que a Umbanda é uma religião organizada com estruturas litúrgicas específicas, enquanto o xamanismo é geralmente mais flexível e variável em suas práticas.

Religiões Afro-Caribenhas

Em países do Caribe, como Cuba e República Dominicana, o Vodu Haitiano, Santeria e outras religiões afro-caribenhas desempenham um papel importante na vida espiritual de muitas pessoas. Elas também estão presentes em comunidades afro-latino-americanas em outros lugares da região.

Santo Daime, a religião mestiça do Brasil

O Santo Daime é uma religião sincrética de origem brasileira que combina elementos cristãos, indígenas e africanos. Uma das mais mestiças expressoões espirituais, ela é conhecida por seu uso sacramental da Ayahuasca, também conhecido como Daime na religião.

Assim como o xamanismo e a Umbanda, o Santo Daime é uma prática espiritual que busca conexões com espiritualidades ancestrais, mas com suas próprias características distintas.

Segundo as crenças do Daime, o consumo ritual da ayahuasca permite a comunicação direta com Deus e com espíritos, bem como a expansão da consciência. Durante as cerimônias, se experimenta visões e estados alterados de consciência, visto como uma forma de busca espiritual e autoconhecimento.

As cerimônias do Santo Daime são realizadas em igrejas conhecidas como “Centros” e envolvem cantos, danças e rituais que incluem o consumo do Daime. Os hinários, cânticos religiosos específicos da tradição, são uma parte fundamental das cerimônias e são usados pra guiar a experiência espiritual.

A natureza também desempenha um papel significativo no Santo Daime, com a crença de que a floresta amazônica é um lugar sagrado e que as plantas e a natureza têm um papel fundamental na conexão espiritual.

Ao contrário do xamanismo, o Santo Daime tem uma estrutura religiosa organizada e uma hierarquia, com líderes espirituais chamados de mestres e mestras. O Santo Daime foi fundado no início do século 20, e sua prática religiosa foi legalizada no Brasil.

Quero lembrar que a América Latina é uma região muito diversa, e as tradições religiosas e as raízes espirituais variam entre os países, inclusive dentro de grupos étnicos e culturas específicas. Essa diversidade reflete a rica rede das crenças e práticas espirituais que existem na região, muito além do cristianismo.

Racismo religioso e espiritual: raízes coloniais

O racismo religioso na América Latina tem profundas raízes espirituais históricas ligadas ao colonialismo e à interação involuntária entre europeus e as culturas indígenas e africanas.

O racismo religioso, que prefiro me referir como racismo espiritual, é assim a discriminação ou desvalorização das crenças espirituais e religiões de grupos étnicos minoritários por parte da cultura dominante.

Durante o período colonial, as potências coloniais na América Latina, principalmente Espanha e Portugal, impuseram o cristianismo como a religião dominante nas colônias, reprimindo as crenças indígenas que já habitavam a região e as africanas trazidas à força pelo mercado de tráfico de humanos. Isso resultou na destruição de muitas práticas espirituais ancestrais e na imposição de um sistema de crenças estrangeiro. E branco!

Os povos indígenas, africanos e mestiços da América Latina foram forçados a adotar o cristianismo e a abandonar suas práticas espirituais tradicionais. Isso levou à supressão e à demonização das religiões indígenas e africanas, bem como à desvalorização de suas tradições espirituais.

O sincretismo religioso, que envolveu a fusão de elementos do cristianismo com as crenças indígenas e africanas, foi uma maneira pela qual as populações indígenas e afrodescendentes conseguiram resistir e manter algumas de suas tradições espirituais em segredo, muitas vezes sob a aparência de práticas cristãs. Isso pude observar recentemente em um caruru durante minha passagem pela Chapada Diamantina, no interior da Bahia: a comunidade celebrando o Dia de Cosme e Damião com cânticos da Umbanda pra os erês.

No entanto, essa fusão não recebe o reconhecimento como prática legítima ou igual ao cristianismo tradicional. Até os dias de hoje, vergonhosamente!

O racismo espiritual persiste em várias formas na América Latina. Por exemplo, as crenças indígenas e afrodescendentes frequentemente enfrentam discriminação e estigmatização. As práticas espirituais tradicionais são muitas vezes marginalizadas e vistas como “supersticiosas”, “demoníacas” ou “primitivas” em comparação com o cristianismo.

No entanto, podemos propor o ressurgimento do interesse e valorização das tradições espirituais indígenas e afrodescendentes na América Latina. Um olhar pra o sul, em direção ao reconhecimento da diversidade cultural que compõe nossas sociedades latinoamericanas.

Descristianizar a espiritualidade na América Latina

Todos os textos religiosos estão condensados nestas duas palavras: Tu deves, Você deve fazer isso, não deve fazer aquilo – ou seja, você não é livre pra escolher o que acha certo. Pois, imagine só, tudo aquilo que é certo ou errado já foi decidido, pra todo o sempre, por pessoas que estão mortas há milhares de anos.

Osho, Torne-se Quem você é

A descristianização da espiritualidade não significa destruir o cristianismo ou perseguir a fé cristã. Se trata, do processo no qual a espiritualidade de uma pessoa ou comunidade se distancia do contexto e das práticas cristãs. Ou seja, se modifica as crenças e rituais em direção a uma espiritualidade mais pluralista, eclética ou secular.

A rejeição de dogmas religiosos não significa rejeitar a ideia de Deus, mas sim se afastar das doutrinas tradicionais do cristianismo e da igreja, em busca de uma espiritualidade mais flexível e personalizada.

Significado de dogma: ponto fundamental e indiscutível de uma crença religiosa. Opinião de uma autoridade que é aceita sem crítica.

À medida que as sociedades se tornam mais diversificadas e inclusivas, as formas tradicionais de religiosidade perdem o poder de hegemonia. Assim, existe uma maior abertura a exposição a diferentes culturas e tradições espirituais, que pode levar as pessoas a incorporar elementos de outras crenças em sua espiritualidade, as tornando menos estritamente cristãs.

No meu ponto de vista, uma espiritualidade madura é aquela que rompe com os padrões sociais e desperta o inconsciente coletivo, em busca da individuação das crenças pessoais.

Além disso, o cristianismo já prova há séculos que a bondade e o cuidado com o meio ambiente não são prioridades. Além de ferramenta colonial, genocída e escravista, a igreja foi protagonista de guerras e eventos históricos de intolerância religiosa, como a Santa Inquisição. A crise da fé cristã é uma tendência popular.

É importante mencionar que a descristianização da espiritualidade não é negativa, mas sim um resultado, uma tendência da diversidade de crenças e práticas espirituais que existem nas sociedades. As pessoas têm a liberdade de explorar e desenvolver sua própria espiritualidade de acordo com suas necessidades e experiências individuais. Não deveriam ser os dogmas da igreja ditando no que e como se expressar espiritualmente.

Raízes espirituais sanadas: Por uma espiritualidade decolonizada e pluricultural

Minha proposta nesse texto não é te convencer de que Deus não existe ou duvidar das tuas crenças, mas é um convite à reflexão: por que a verdade espiritual branca é absoluta enquanto outras crenças nativas e africanas são inverdades?

É comum ver pessoas em processo de descristianização buscando espiritualidade na Ásia, onde há muitas expressões religiosas, como o Budismo, por exemplo. Não discordo de que existem muitas boas respostas e verdades nessas religiões, mas o racismo espiritual na América Latina é tão enraizado, que as pessoas aqui pensam em buscar “A” verdade do outro lado do mundo, em uma cultura extremamente distante da própria, ao invés de se questionar sobre suas raízes espirituais, resgatando crenças indígenas e africanas.

Neste sentido, minha proposta é pensar em uma espiritualidade pluricultural, sem hierarquia de crenças, na qual todas as verdades podem ser entrelaçadas. Mas, antes de mais nada, respeitadas e validadas. Além disso, questionadas, já que não há verdades absolutas.

Espiritualidade multicultral

Porém, essa proposta de espiritualidade multicultural só se poderá experimentar em um verdadeiro Estado laico, como prometia ser o Brasil, em uma coexistência harmoniosa real. Enquanto nossas sociedades se mantiverem dominadas pelo colonialismo cristão, nossas raízes espirituais seguirão enfermas e nossos frutos da alma não serão doces e fortes, mas sim amargos e, muitas vezes, venenosos.

A espiritualidade pluricultural que proponho aqui, é uma busca por compreender e honrar a diversidade de crenças, rituais e práticas espirituais que têm raízes nas culturas indígenas, africanas, europeias e outras que se entrelaçaram na construção da América Latina ao longo da história.

Uma das maneiras de abordar esse tema é através do respeito e da abertura pra aprender com as diferentes tradições espirituais presentes na região. Isso pode envolver a participação em cerimônias e rituais locais, ouvir as histórias e mitologias de diferentes culturas, e estar disposta a compreender como essas práticas espirituais moldam a identidade e a vida das pessoas na América Latina.

Também pode ser uma jornada de autodescoberta, na qual você explora como as diferentes tradições espirituais da região podem ressoar com sua própria espiritualidade e valores pessoais. Isso pode envolver a prática de técnicas espirituais que tenham influências de diferentes culturas. E isso muito além da América Latina.

A arte e a música desempenham um papel significativo na expressão espiritual, muitas vezes servindo como veículos pra transmitir histórias, mitos e mensagens espirituais. Tenho uma playlist no Spotify chamada Espiritualidade Latina, na qual você poderá conhecer um pouco sobre as crenças nativas e africanas. São lindas, te garanto!

Além disso, o respeito pela natureza e a preservação do meio ambiente frequentemente estão entrelaçados com muitas tradições espirituais na região, tornando o ecoturismo espiritual uma maneira significativa de se conectar com as espiritualidades locais.

futuro é ancestral e a humanidade precisa aprender com ele a pisar suavemente na terra.

Ailton Krenak, escritor e ativista indígena

Enfim, a expressão espiritual pluricultural na América Latina é uma jornada de descoberta, aprendizado e respeito pelas diversas tradições espirituais da região. Ela pode enriquecer a nossa compreensão da espiritualidade, da cultura e da identidade na América Latina, ao mesmo tempo que promove a coexistência pacífica e a valorização da diversidade espiritual.

Além disso é um caminho libertador, porque você passa a se ver como parte de Deus, soltando os padrões coloniais, o sistema de pecados e castigos e solta tua alma pra se expressar livremente sem medo ou dor!

canal de viagens no youtube
POST ANTERIOR
Missões Jesuíticas na América do Sul: História e reflexões para o turismo
PRÓXIMO POST
Uma aventura entre cânions em Tupiza na Bolívia