Despertando minha latinoamericanidade através das viagens pela América Latina
Era um sábado de noite estrelada de junho e fazia bastante frio em Ubatuba. Eu estava na força ancestral da Ayahuasca, a medicina sagrada da floresta, e me sentei em volta da fogueira pra me aquecer. Minha consciência mergulhou nas mais profundas questões de latinoamericanidade e uma percepção sobre o slogan que eu tinha no Instagram, que era ‘Descobrindo minha latinidade’. Com dificuldade cognitiva peguei o celular e escrevi o seguinte texto:
Não estou descobrindo minha latinidade. Estou reconhecendo e expressando.
Quem descobre é forasteiro. Eu não. Eu SOU latina, nativa do Sul.
O que faço enquanto viajo pela América Latina é me reconhecer em outras almas, outros rostos, outros corpos, outras vozes.
Também é reconhecer as marcas históricas e a resistência ancestral dos povos originários.
É viajando que vivo o movimento do reconhecer, assim posso despertar minha latinidade e então mostrá-la ao mundo.
Entre tantas reflexões naquela noite, entendi que venho me despertando de dentro pra fora viagem pós viagem pela América Latina. Os lugares, as pessoas e a História Latino-americana me inspiram a reconhecer minha própria latinoamericanidade, palavra que carrega em dez sílabas um conceito político, cultural e histórico.
Consciência de Latinoamericanidade na Argentina, Bolívia e Peru
Tudo começou em 2015, um ano depois de eu ter criado o UMASULAMERICANA para falar de viagens. Em Salta, no altiplano argentino, depois de dar bom dia aos que já estavam a bordo, me sentei com meu então companheiro em uma van de turismo pra conhecer a Quebrada de Cafayate. O guia alegremente disse:
– Olha só, esse vai ser um passeio completamente latino. Temos aqui uma chilena, uma mexicana, um casal brasileiro e seis argentinos. Estamos em casa, então.
Instantaneamente tomei consciência da minha latinoamericanidade. Imagino que uma criança se sinta exatamente como me senti naquele momento quando ela descobre o EU. Foi como se meu corpo tomasse forma e tudo fizesse sentido.
Voltei a pensar no assunto ainda durante meu primeiro mochilão pela América do Sul, quando cheguei à Bolívia semanas depois de Salta e vivi o maior choque cultural da vida até hoje. A Bolívia expressa profundamente a América Latina. Um país que é considerado pobre, mas que resiste firmemente a contínua colonização a qual somos submetidos a mais de 500 anos.
A Bolívia foi minha grande inspiração e me fez questionar todas as verdades que eu conhecia até então. Assim comecei meu processo de desconstrução. Ou seria de reconstrução de identidade latina?
Em 2017 fiz uma viagem que mudou minha vida. Fui sozinha para o Peru de férias um dia depois de ter vivido um ataque de pânico por conta do estresse no trabalho. Me sentia vazia, como se nada habitasse o meu corpo. Mesmo assim fui viajar, porque já estava tudo pronto.
No segundo dia de viagem, sentada em frente ao Glaciar Pastoruri em Huaraz, vivi uma espécie de viagem astral. Fechei os olhos e minha consciência me mostrou o sentido da vida pela primeira vez. Costumo dizer que minha alma renasceu andina. Neste dia, tudo o que havia começado na Bolívia 2 anos antes fez sentido.
Já em 2018 um italiano que conheci em Tilcara, em minha segunda visita ao Norte argentino durante um mochilão sozinha por Paraguai, Argentina e Chile, fez o comentário que despertou de vez a latinoamericana adormecida no meu peito. Ele disse:
– Vocês latinoamericanos são tão expressivos. São dramáticos, se tocam ao conversar, riem alto, dançam bem, festejam por tudo. Na Europa nós não somos assim, a não ser com umas doses de álcool.
Vocês. Nós.
Nós, latinoamericanos
O único grupo ao qual eu já havia me sentido parte antes era o feminino, mas nunca um grupo étnico ou de identidade. Não sou negra, nem indígena. Quem sou eu? Sempre me senti perdida, com diversas crises existenciais.
Me sentir parte de um grupo me deu forma e um lugar no mundo. Eu sou latinoamericana, nativa do Sul, parida no Brasil.
Quando o italiano fez o comentário sobre nós, eu lhe disse que nunca havia antes me sentido parte da América Latina e ele me disse que eu deveria então ler o livro ‘As Veias Abertas da América Latina’, porque me ajudaria nesse processo.
Assim que cheguei ao Brasil comprei o livro em sua versão em português, já que foi escrito em espanhol em 1971 pelo escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano. E então tudo foi ficando mais claro sobre minha latinidade. E, na mesma medida, mais turvo, porque reconhecer nossas veias abertas não foi fácil..
Este livro foi uma viagem ao passado e pude autoconhecer minha história por outra perspectiva.
Aqui tem o PDF do livro ‘As Veias Abertas da América Latina’ pra que você que não pode investir no livro comece tua leitura e desperte esse sentimento de pertencimento latino.
Meu corpo e a identidade latinoamericana
Quando morei por uns meses em Valparaíso, no Chile, em 2019, fui a uma feira de roupas usadas que acontecia aos domingos. Perguntei o preço de uma peça e a senhora me falou um valor bastante atraente, ao que comentei em português com uma amiga brasileira. A senhora se sentiu ofendida e me disse que esse preço era porque ela achou que eu era venezuelana, mas que não sendo, o valor era outro.
Quando estive em Jujuy pela terceira vez, também em 2019, visitei as ruínas de Pucará de Tilcara e paguei o preço de pessoas locais, mas o atendente nem me perguntou de onde eu era, apenas me cobrou o valor menor.
Em São Paulo, no final de 2018, eu andava pela Avenida Paulista no domingo olhando os artesanatos, porque buscava um colar. O artesão que me atendeu falou comigo em espanhol, perguntando de onde eu era. Respondi em português que era brasileira e ele me disse que eu parecia peruana.
E em 2015, em Santa Marta, na Colômbia, um colombiano me perguntou se eu era de Barranquilla, além disso o preço da limonada pra mim era mais barato que pra o meu então parceiro, que se parecia estrageiro.
Quando viajo pela América Latina caminho nas ruas sem chamar muita atenção, porque eu me pareço com uma local aonde quer que eu vá (exceto, claro, pelo interior da Bolívia e do Peru, porque as roupas me entregam).
Essa dúvida que as pessoas têm sobre minha nacionalidade reforça ainda mais esse sentimento de pertencimento latino que adquiri viajando. Sou lida como latina, tanto por latino-americanos, quanto por gringos. Como não despertar minha latinoamericanidade?
É claro que existem todos os tipos de latinos, desde os loiros de olhos e pele claros aos de cabelo crespo e pele escura. Afinal, isso é latinoamericanidade, essa miscigenação só vista por aqui. Porém existe uma característica que é exclusiva da América Latina e é nela que eu me encaixo.
O despertar de latinoamericanidade no espanhol
Quando comecei a viajar por outros países latinos eu não sabia nada de espanhol e me desenvolvi na estrada, como comentei neste artigo sobre este processo de aprender o espanhol sozinha. Isso me aproximou ainda mais deste ‘nós’ do qual eu jamais havia sido parte antes.
Esse sentimento de latinoamericanidade pode ser mais evidente quando você pode se comunicar. A medida que meu espanhol ia melhorando, esse sentimento ia crescendo e mais identificada eu me sentia.
Acredito que falar espanhol é a chave do pertencimento quando falamos na identidade latina dos brasileiros. Apenas 4% de nós nos sentimos latino-americanos e isso se deve muito a questão linguística.
Em suma, apenas fomos explorados em um idioma diferente. Por acordos feitos por “eles”, os povos originários do Brasil e os africanos traficados pra cá sofreram uma imposição linguística por parte de Portugal. Nossos vizinhos, no entanto, tiveram quase todas as suas línguas extinguidas por parte da Espanha. Essa é a única coisa que realmente diferencia o povo brasileiro do restante da América Latina.
América Latina é o conjunto de países localizados entre o Rio Grande e a Terra do Fogo que falam oficialmente idiomas originadas do latim, ou seja, espanhol, português e francês. Isso nos coloca diretamente dentro, é só despertar o sentimento de latinidade.
Enfim, sigo despertando minha latinoamericanidade enquanto viajo a América Latina. Viajo me identificando e me reconhecendo latino-americana. E o UMASULAMERICANA, além de guia de viagem, é um guia pra esse processo de despertar de latinoamericanidade. Vamos juntos?
2 Comentários
Aline, muito lindo o seu processo. Fiquei emocionada e inspirada, porque nunca tinha pensado sobre o assunto. Obrigada por compartilhar
Muito obrigada, Vanessa. Fico muito feliz que tenha se inspirado a reconhecer tua latinonamericanidade também