Nem branca, nem preta, nem indigena: eu sou um corpo mestiço
Cresci tendo como referência de beleza a pele branca, o cabelo liso, os olhos claros e o físico magro. De repente ouvia mulheres pretas assumindo sua identidade e valorizando seus traços, como a pele negra, o cabelo crespo, o quadril largo e os lábios carnudos.
Me lembro que nessa época, pela primeira vez na vida, me perguntei onde eu me encaixava. Nem branca, nem preta. Quem sou eu? O que meu corpo comunica em relação às minhas raízes?
Descobrir-me latina e mestiça foi uma das coisas mais libertadoras que vivi, porque me deu a chance de fortalecer minha autoestima, de explorar minha construção social e buscar a verdadeira história do Brasil.
Mestiça: meu corpo revela um passado colonial
De modo simplista, ser mestiça significa ter uma mistura de origens étnicas diferentes e expressar uma herança cultural e genética diversificada. É um termo frequentemente usado pra descrever pessoas que têm ascendência mista, ou seja, cujos antepassados pertencem a diferentes grupos étnicos.
No contexto brasileiro, a palavra “mestiço” tem sido históricamente usada pra descrever quem têm ancestralidade mista indígena, africana e/ou europeia. É preciso lembrar que o Brasil é terra indigena, que foi invadida e colonizada por europeus e que teve um extenso período de trafico de africanos com fins escravagistas.
Nossos corpos mestiços são jovens. Temos pouco mais de 500 anos, ainda estamos nos descobrindo. E, à medida que nos descobrimos, mostramos ao mundo quem somos. Mas como saber quem somos?
Parda é cor?
Toda a vida fui pintada de parda, uma cor que tem mil tons e nuances. Tem quem negue esta cor. Tem quem a use como manobra política. Há quem diga que é negra e quem diga que é branca.
Eu sofro de pardismo. Esta condição comum ao povo brasileiro desde antes de o próprio brasileiro existir.
Naquela carta que mencionaram em sala de aula, escrita por Pero Vaz de Caminha pra o rei Manuel I de Portugal, no fatídico ano de 1500, quando a coroa portuguesa invadiu Pindorama, ele chamou os nativos de “pardos“:
“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel”.
Pero Vaz de Caminha
Historicamente, o termo “pardo” também era empregado pela Espanha na América Hispânica durante os séculos 16 e 17 pra descrever um sistema de castas, já que a economia da região era baseada na escravidão durante a época colonial.
Assim, se utilizava o termo pra classificar pessoas de origem mista ou com características físicas que não se encaixavam nas categorias rígidas de brancos ou negros, mas que tampouco eram nativas.
Enfim, o termo pardo já foi usado pra designar nativos ou descendentes livres de africanos. Assim, pardo foi mais um termo racista que os brancos escolheram pra agrupar pessoas com características físicas e culturais totalmente diferentes.
Viajando há 9 anos pela América Latina, me dei conta de que outros países chamam de mestiços aqueles que não são indígenas e tampouco afrolatinos. Me senti abraçada pelo termo e pela primeira vez senti que pertencia a algum grupo racial.
Apesar de o termo mestiço ter seu peso, acredito que ele é muito mais forte, mostrando sem maquiagem que existem pessoas que são a cara do resultado de miscigenação na era colonial. Palavras são ferramentas sociais e a palavra ‘mestiça’ me dá muito mais voz política.
A pessoa parda no Brasil
A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, de 2021, as pessoas pardas somam cerca de 100 milhões de brasileiras. Nós respondemos por 47% da população do Brasil, à frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre indígenas e amarelos (0,9%).
Se bem que não confio nesse resultado, porque tem muito mestiço se achando branco, muitos inclinados a se identificar como afrobrasileiros e outros que não sabem nem ao menos se identificar.
Não posso contar as vezes que escutei pessoas pretas classificando como brancas pessoas com claras características miscigenadas, não só na aparência, como na expressão cultural.
Em 2010, durante o governo Lula, o Congresso aprovou uma lei que criou o Estatuto da Igualdade Racial, que definiu a população negra como “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas”.
Uma manobra política à pedido do movimento negro baseado na literatura afroestadunidense, que nada tem a ver com a história de miscigenação brasileira.
A pessoa mestiça vive num limbo social e político, sem saber em qual lugar se encaixar. Ao mesmo tempo que entro em qualquer lugar, sinto que lugar nenhum me acolhe.
O corpo mestiço e seus lugares
- Mulata – pessoa descendente de brancos e negros
- Cabocla ou mameluca – pessoa que descende de brancos e indigenas
- Cafuza – aquela que descende de negros e indígenas
O corpo mestiço possui características físicas únicas, resultado de uma mistura de aspectos étnicos que inciou na colonização. Depois disso, nossas sociedades latinoamericanas começaram a receber outras ondas migratórias, como a libanesa, a japonesa, a italiana e a alemã. Assim, ser mestiço abraça uma ampla gama de combinações de ascendências.
É fundamental reconhecer e valorizar a diversidade étnica e cultural presente na sociedade brasileira, destacando a existência dos mestiços pra combater qualquer tipo de discriminação ou preconceito baseado em raça, cor ou origem étnica. Existe uma espécie de apagamento hegemônico quando os pardos são classificados como população negra.
O Estado do Amazonas é onde há maior presença de pardos no Brasil, porém, em sua maioria, não descendem de africanos, senão que de indígenas. Como podem ser parte da população negra?
Acontece que cada pessoa mestiça tem sua própria identidade única, e é importante respeitar e valorizar essa diversidade, que varia muito dependendo da região.
Meu sangue latino, meu corpo mestiço
A identificação como mestiça é uma questão muito pessoal e também subjetiva. Cada pessoa tem o direito de se identificar como desejar, levando em consideração sua própria história, experiências e percepções sobre sua herança étnica.
No Equador conheci uma brasileira que é ativista negra e especialista em Direitos Humanos, que possui um tom de pele muito próximo do meu. Apesar disso, ela se autodeclara negra por conta de seu fenótipo. Viajamos juntas à Cuba e lá, durante uma conversa sobre o tema, ela me sugeriu ‘amiga, você não pensa em se assumir negra?’. Fiquei muito surpresa, porque jamais na vida me identifiquei ou fui identificada como pessoa negra.
Desde 2019, já fui comparada 4 vezes com a Pocahontas. Em uma enquete no meu instagram, 60% das pessoas me consideram indígena, apesar de eu não pertencer a nenhuma etnia e não saber nada sobre minha ancestralidade nativa.
Como respondi a minha amiga neste dia, minha autoidentificação como mestiça é uma forma de reconhecer e abraçar minha ancestralidade mista, honrando minhas raízes e celebrando a diversidade cultural e étnica presente na minha história familiar. Tenho cada vez mais ganhado consciência e, consequentemente orgulho em ser um corpo mestiço.
No entanto, acho importante mencionar que reconhecer nossa identidade enquanto pessoas latinas é complexo e doloroso, ao mesmo tempo que é libertador e curioso.
Nesse processo tive consciência que a miscigenação na América tem raíz na violência contra a mulher. A contribuição de genes paternos está em sua maioria vinculado aos brancos europeus, enquanto que a materna está ligada aos genes africanos e indígenas.
Por outro lado, pude desenvolver autoestima e amar meu quadril largo, meu cabelo escuro e encaracolado, meus lábios grandes, meus olhos pequenos, minha pele parda e minha estatura de 1,54 metros. Também passei a sentir um orgulho imenso das culturas originárias e africanas.
Como amante das palavras e comunicação, um dos meus amores é o português mestiço do Brasil, um idioma de herança colonial, mas cheio de influência de línguas nativas e africanas que resistiram à hegemonia.
Enfim, ser uma pessoa mestiça pode ser mágico quando você percebe a diversidade que mora em cada célula tua, em cada curva do teu corpo e em cada expressão cultural e social, seja individual ou que mora no inconsciente coletivo.
Leia também sobre a Filosofia da Libertação, um movimento fisolofico-social da América Latina
2 Comentários
Que texto político y de amplio debate, super necesario. Que magia leerte
Gracias, Andrea. Me alegra tanto que te haya gustado. Gracias por leerme