Eu vi Deus na caravela
Deus invadiu essas terras há muito tempo. Os homens que o trouxeram disseram que o ano era 1500 depois de um tal de Cristo.
Nessas terras moravam muitos deuses e entidades divinas. A maior parte deles eram reais, como o Sol e a Lua, como a terra e o vento, como a água e a mata.
Já existiam nossos guardiões e seres mitológicos, como o espírito da serpente, do jaguar ou da árvore.
Mas Deus chegou na caravela e, segundo diziam, ele não gosta de compartilhar espaços, então nenhum outro deus poderia ficar. Éramos condenados quando nos manifestávamos aos nossos deuses. Os brancos não entendiam nossas orações, mas queriam que entendêssemos as suas.
Os homens que trouxeram Deus falavam em nome dele. Não parecia muito convincente e na verdade era muito contraditório, porque diziam que Deus era amor, mas não se sentia amor em suas ações.
Então trouxeram outros homens, uns que usavam vestidos e eram chamados Jesuítas. Juntos criamos aldeias onde tínhamos uma rotina de roça e outra de estudos, além dos trabalhos artesanais.
A rotina de estudos revelou que o interesse dos Jesuítas era nos convencer sobre o Deus que veio na caravela. Seria mais fácil se Deus se revelasse em si como a chuva, mas não. Todos aqueles homens brancos podiam falar por ele e os Jesuítas eram, digamos, especialistas em falar por Deus.
Não podíamos sair dos aldeamentos, porque era um acordo entre os homens brancos. Alguns de nós pudemos escapar e resistir na mata. Mas os que convivemos com os Jesuítas vivemos aquela rotina por muitos e muitos anos.
Talvez tenhamos enlouquecido ou quem sabe os Jesuítas já estavam nos convencendo, mas alguns dos aldeados passaram a aceitar as ordens e as vontades de Deus! Essas vontades nunca eram ditas a nós diretamente e nunca nos favoreceu. Deus, na verdade, priorizava os brancos. Deus era branco!
Os que nasciam nas aldeias eram mais fáceis de convencer. Sabe como é criança, né? Acreditam em tudo, porque não sabem nada.
Os mais velhos, os que vimos Deus chegar na caravela, estávamos morrendo aos poucos. Logo aquelas ideias sobre Deus dominaria os assentamentos.
Enquanto isso, os homens de Deus, os brancos, trouxeram muitos homens pretos em embarcações bem grandes. Eles vinham já acorrentados e eram forçados a trabalhar em nome da Coroa, onde havia outro homem branco abaixo de Deus.
Enquanto nós produzíamos alimentos e artesanatos que seriam comercializados pelos brancos em uma tal de Europa, aqueles homens pretos, que também eram comercializados, ficavam com o trabalho pesado. Segundo os padres, que falavam em nome de Deus, os pretos não tinham alma.
Assim como nós, os que vimos Deus chegar na caravela, os pretos eram submetidos à fé em Cristo e a um modo de falar que os brancos chamavam de português. Ou espanhol ou ingles, dependendo de uma divisão que fizeram sem a opinião dos povos originários da África e do que chamaram de América.
Nenhuma manifestação religiosa e nenhuma cosmovisão era permitida além do cristianismo. Mataram nossos deuses, os que viviam aqui e os que vieram traficados junto com os pretos.
Nós morremos e não sobrou viva nenhuma testemunha de Deus chegando na caravela. Com os passar do tempo era como se Deus sempre houvesse estado aqui. Mas ele não estava!
Aqui existiam centenas de deuses, dos mais variados. Eles se manifestavam através de medicinas sagradas, de chuva, de vento, de fenômenos naturais. Os que sobreviveram resistem a mais de 5 séculos, mas ainda seguem sendo perseguidos pelos missionários cristãos, os novos colonizadores.
Depois de 522 anos Deus ainda está aqui. E segue ocupando espaços que não deveria, como a política e a educação. Até hoje homens sem amor seguem falando em nome dele e, tristemente, vemos uma multidão acreditando sem nunca haver se perguntado de onde veio Deus.
Deus foi enraizado durante a invasão, conquista e colonização, juntamente com os novos idiomas e manifestações sociais europeias.
Curioso é que ele está mais aqui que lá de onde veio. Na América, como nos chamou os homens brancos, vivem 40% dos cristãos do mundo. Curioso também é como se nota um subdesenvolvimento social significativo em sociedades onde Deus está.
Hoje, é como se a caravela nunca tivesse existido! Mas nós a vimos chegar. Deus não estava aqui.
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Este texto não tem o intuito de ofender o cristianismo. Se trata de um convite a reflexão sobre como Deus e o cristianismo conquistaram espaços onde já haviam manifestações religiosas.
A fé cristã foi uma imposição violenta e desumana nas Américas, não havia Deus de amor, apenas o de fogo e espada.
Até hoje as culturas de origem africana e indígena sofrem preconceito e perseguição, com ações de conquista, como a evangelização ou a intolerância religiosa.